Texto proposta

Este artigo foi desenvolvido previamente para uma primeira proposta da Residência Capacete em 2010 com base no parágrafo abaixo: Parte-se do pressuposto de que o Brasil tem ignorado seu passado da ditadura militar (1964/1985), seu período recente mais obscuro. Consequentemente há que redefinir prioridades e identidades num espaço multiracial, tomando simultaneamente em conta os conflitos que permeiam as interações na contemporaneidade que não podem ser entendidas como um mero “choque de classes sociais”, mas como lugares complexos de conviviabilidade (Gilroy) ou zonas de contato (Pratt), em que a desigualdade de anteriores dependências é prolongada e contestada.

Por que o Brasil tem ignorado seu passado da ditadura militar após 25 anos de abertura democrática?

Sabe-se que entre os anos de 1964 até 1985 o país foi governado por um regime militar; organizado a partir de um golpe de estado que vetou, entre tantas coisas, o direito de governabilidade do Presidente da República, na época, João Goulart. O golpe de 64 é justificado sob pretexto de conter a onda comunista que ‘ameaçava’ os países da América Latina, durante o período da Guerra Fria.

Mesmo, contudo, reconhecemos hoje, que esse golpe foi organizado sob o comando da Central Intelligence Agency adicalizando as lutas sociais ao ponto de provocar o desequilíbrio político e desestabilizar governos que não se submetiam às diretrizes estratégicas dos Estados Unidos [1].

Revisitar o período da ditadura militar, é acercar-se apenas de uma parcela de nossa história marcada por camadas de opressão, imposição, loucura e hipocrisia. Para saltarmos ao tópico que envolve a formação multirracial em território brasileiro, devemos olhar ainda mais para trás. Olhar para nossa primeira globalização: ‘A globalização do colonialismo, fundamentada na ocupação de imensos territórios que não estavam desocupados. Em apenas um século entre 1500 e 1600 dos 80 milhões de nativos existentes na América précolombiana, 70 milhões foram exterminados. A segunda globalização começa no fim do século XX marcada pela fragmentação dos territórios’. [2] O termo zona de contato [3] que introduz um dos aspectos contextuais desta residência pode ser compreendido como sinônimo de fronteira cultural. Zona de contato enfatiza as dimensões interativas e improvisadas dos encontros em território colonizado. Esses encontros colocam em questão a construção do sujeito a partir de relações entre colonizadores e colonizados numa interação de trocas via relações assimétricas de poder.

Não seria zona de contato mais uma criação do romantismo; pura expressão do espírito europeu? Tendo constatado isso, pergunta-se: Em que contexto as prioridades e identidades de um espaço multirracial poderiam ser redefinidos? Quais seriam as principais diretrizes para esta redefinição? Como se posiciona o artista frente este contexto?

Definitivamente, a posição do artista como um “esteticista” é insustentável no nosso panorama cultural: ou tomamos consciência disso ou estamos destinados a permanecer em algum tipo de colonialismo cultural; simples especulações sobre possibilidades que basicamente retornam a grandes idéias já mortas. [4] Não é de hoje que vemos ressurgir no contexto brasileiro um resgate de proposições coletivas, um “retorno ao mundo”. Espera-se assim um ressurgimento pelo interesse dos problemas humanos, enfim, pela vida. Para que de fato ressurja uma redefinição sobre as prioridades e identidades num espaço multirracial como o Brasil, deveríamos olhar a história do presente a partir da ‘descolonização’ e não como uma pós-colonização, terminologia utilizada até hoje por intelectuais e historiadores.

Relembrar o “mito antropofágico” acerca-nos de um otimismo de transformação, sem grandes revoluções. ‘A etapa antropofágica realça a contradição violenta entre duas culturas: a primitiva (ameríndia e africana) e a latina (de herança cultural européia), que formam a base da cultura brasileira, mediante a transformação do elemento selvagem em instrumento agressivo. Aqui o mito, é irracional, serve tanto para criticar a história do Brasil e as conseqüências de seu passado colonial, quanto para estabelecer um horizonte utópico, em que o matriarcado da comunidade primitiva substitui o sistema burguês patriarcal’. [5] O cineasta Glauber Rocha relembra-nos que ‘a descoberta antropofágica, foi uma revelação: provocou consciência, uma atitude diante da cultura colonial que não é uma rejeição à cultura ocidental como era no início (e era loucura, porque não temos uma metodologia): aceitamos a ricezione integral, a ingestão dos métodos fundamentais de uma cultura completa e complexa, mas também a transformação mediante os nostros succhi e através da utilização e elaboração da política correta’. [6]

Então, por que o Brasil tem ignorado seu passado da ditadura militar após 25 anos de abertura democrática? Será que deixamos de fazer a digestão? O que aconteceu com o nosso “mito antropofágico”? Não seria a consequencia de nossa recente democracia amputada, a qual foi construída a partir de uma globalização marcada pela fragmentação dos territórios?

O escritor José Saramago, recém falecido, comentava em uma de suas palestras que hoje não se discute a democracia: “A democracia está ai, como se fosse uma espécie de santo de altar; de quem já não se quer milagres, mas que está ai como uma referência: A democracia. Não se repara que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada. Porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se na esfera política a tirar um governo do que não gosta e a de por outro que talvez vem a gostar. Nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas em uma outra esfera, e todos sabemos qual é. As grandes organizações financeiras internacionais, os fundos internacionais monetários, as organizações mundiais de comércio, os bancos mundiais, etc. (…) Nenhum desses organismos é democrático. Portanto como é que podemos continuar a falar de democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os respectivos povos? Não. Onde está então democracia?” [7]

Com base nas reflexões levantadas neste ensaio é que gostaria de desenvolver meu projeto naresidência CAPACETE do Rio de Janeiro. Durante os dois meses de a residência desejo vivenciar o “mito antropofágico de um país tropical”. Esta vivência será desenvolvida a partir de conversas informais com uma parcela da comunidade carioca. As conversas servirão apenas como instrumento de pesquisa que ao final será apresentado em um formato dispositivo texto/fala. Para início desta conversa colocarei um anúncio onde trará a seguinte informação: Artista residente no exterior há oito anos busca informações sobre seu país.

Daniele Marx

Notas:

1.BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A CIA e a técnica de Golpe de Estado. Revista Espaço Acadêmico N.o 58, Março de 2006. Consultar http://www.espacoacademico.com.br/058/58bandeira.htm.

2. Encontro com Milton Santos, O Mundo Global Visto do Lado de Cá, 2006, documentário dirigido por Silvio Tendler.

3. Expressão usada por Mary Louise Pratt, em Relatos de Viagem e Transculturação, São Paulo:EDUSC,1999.

4. OITICICA, Hélio. Esquema Geral de uma nova objetividade. Catálogo Hélio Oiticica. Barcelona: Fundaciò Antoni Tàpies, 1992.

5. Enciclopédia ItauCultural, Manifesto Antropófago, http://www.itaucultural.org.br